A importância da Gruta de Avecasta, Areias, Ferreira do Zêzere


Qual a importância de Avecasta no panorama arqueológico português?

A Gruta da AVECASTA é um sítio arqueológico único no país; O seu enorme interesse arqueológico resulta da conservação excepcional das estruturas das várias aldeias sobrepostas, desde há mais de 5 mil anos, cujos vários horizontes de ocupação (solos, pavimentos, alicerces, muros, lareiras, outras estruturas domésticas, muito espólio utilitário e dejectos) foram sucessivamente selados e preservados por camadas de argila fina. A deposição desta lama, proveniente da erosão dos solos do cabeço, processo desencadeado pelos próprios ocupantes de então, obrigou à periódica reconstrução dos pavimentos de terra batida ou de empedrado, progressivamente mais acima no preenchimento sedimentar da cavidade, selando intactos os solos de ocupação anteriores. É ainda a esta “lama” que se deve a extraordinária conservação dos materiais, envolvidos numa matriz sedimentar muito pouco arejada, sempre húmida e geoquimicamente neutra.

Estas raras condições – que forçosamente terão que ser potenciadas por uma poderosa arqueologia multi-disciplinar, atenta a todo o tipo de vestígio (grande, pequeno, micro, artefactual, biológico, geológico, químico) – poderão permitir uma reconstituição rigorosa e nova do espaço de habitat e do modo de vida doméstico destas antigas populações do remoto Portugal. Por outro lado, a óptima preservação dos materiais de origem orgânica (ossos, conchas, sementes, carvões, grãos de pólen e outros micro e macrofósseis) viabiliza o estudo da evolução da ligação ecológica destas comunidades à paisagem envolvente e dos seus padrões de exploração e ruralização do território.

Finalmente, fazemos notar que a gruta preserva na “grande sala”, mais de 30 metros de sedimentos grosseiros e argilosos depositados ao longo de mais de 100 mil anos que poderão registar a história natural e humana dos períodos remotos da Idade do Gelo (Pleistocénico).

O que revelaram os trabalhos de recolha dos anos 80 e 90?

Quase nada ainda se conhece sobre as épocas mais remotas, correlativas das cascalheiras profundas, no entanto há indícios pela presença de indústria de pedra lascada do Paleolítico Superior (de há cerca de 20 mil anos) ou mesmo do Paleolítico Médio (de há mais de 40 mil anos) de que o sítio teria sido ocupado nessas épocas (com vestígios muito profundos de difícil acesso, por enquanto). Sobre este conjunto de depósitos muito antigos existem quase 5 metros de argilas mais recentes (do Pós-Glacial) que “embalam” estruturas de antigas aldeias. As fases mais importantes de ocupação da gruta serão as datáveis do Neolítico (há cerca de 6 mil anos) e da Idade do Cobre (Calcolítico,  há cerca de 4 mil e quinhentos anos). A análise microscópica do pólen preservado nas lamas (indicando pastagens e culturas agrícolas), os ossos dos animais domésticos, a profusa olaria, atestam a existência de um povoado que se prolongaria para fora da Gruta, rodeado de um espaço rural importante. Há ainda a salientar a presença de fornos de fundição de cobre que nos elucidam sobre as mais antigas técnicas da metalurgia. As ocupações continuam durante a Idade do Bronze (há mais de 30 séculos) e na Época do Ferro. Outra fase interessante é a da Época Romana. Nessa altura a gruta parece ter sido uma instalação de tipo industrial provavelmente associada à fundição do ferro. Há indícios de grandes paredes de pedra vã e telhados, talvez cobrindo parte da dolina (a depressão externa de acesso à Gruta que resultou do abatimento de parte de um antigo tecto). Há ainda pavimentos de empedrado e paliçadas. Finalmente encontram-se vestígios medievais. Nos últimos 500 anos a gruta está parcialmente abandonada.

Fazemos notar que embora se tenham realizado cerca de 6 campanhas de escavação por nós dirigidas, ainda apenas se vislumbra a ponta do grande “iceberg” de memórias enterradas.

Qual a importância da classificação do sítio arqueológico?

A classificação de um sítio com esta gigantesca informação sobre o passado é imprescindível. É em primeiro lugar o reconhecimento da importância do sítio que embora não deixe de ser propriedade integral dos seus legítimos donos passa assim a ser também um bocadinho de todos nós, no sentido em que lá reside parte importante da nossa identidade colectiva remota. É também a única forma de garantir na lei que o legado enterrado que aí se encontra, e que certamente demorará muitos séculos a estudar e valorizar por muitas gerações, será preservado, dado que passará a ser legalmente necessário avaliar e aprovar qualquer acção de gestão / alteração do sítio. Só o reconhecimento público poderá propiciar desenvolvimento. 

Que consequências terá?

É necessário ter consciência que o sítio nunca teve aptidão agrícola nem urbana daí que a classificação não venha empecilhar qualquer funcionalidade potencial imaginável que não seja a fruição de um espaço de grande beleza, valor cultural e memorial, catalisador dos nossos sentidos, da imaginação colectiva, e da curiosidade científica. 

Para os legítimos proprietários, que deverão ter acesso total ao seu monumento e, caso queiram, participar na sua valorização (sem que se faça perigar a integridade do legado cultural aí preservado), poderá ser motivo de orgulho; Para o sítio, o reconhecimento público poderá abrir portas para captar apoios nacionais e internacionais, estatais e privados que possam potenciar a criação de um museu e pólo de atracção regional de turismo cultural.   

O que vai acontecer depois da classificação?

Acreditamos que será então possível encontrar condições para se lançar um programa sustentável de valorização, estudo e divulgação da Gruta nas usas valências diversas (naturais e culturais) que passará pela permanência de uma equipa científica, técnica, logística e administrativa adequada e reconhecida. Há que assegurar um bom trabalho regular, mesmo que inicialmente modesto, capaz de vir a angariar progressivamente novas sinergias para que o projecto possa crescer em investimento, impacto público e retorno para a região e suas populações.

Vão recomeçar os trabalhos arqueológicos?

Naturalmente que sim. Há que fazer notar que – ao contrário da esmagadora quantidade de sítios arqueológicos do país (de conservação mediana) que se escavam e esgotam em 2 ou 3 meses por serem um repositório de cacos e pedras, meia dúzia de bases de muros, embalados num palmo de terra – a Avecasta é uma espécie de poço-portal do tempo cujo estudo nunca irá acabar – uma espécie de eterno santuário da memória. Imaginamos que daqui a 200 / 300 anos os futuros “cientistas do passado” dotados de tecnologias potentíssimas de pesquisa nos irão agradecer a visão de humildade que devemos hoje assumir quando pensamos em escavar: Escavar devagar, para que cada camada de terra “desmontada” não seja uma página de um livro único que se lê mas se arranca e destrói para sempre (como diz a analogia…). Daí a necessidade de se procurar registar com detalhe e guardar tudo o que seja possível para o resgatar do esquecimento.

Fazemos notar que, com excepção da necessária urgente intervenção para salvar alguma da informação destruída pelas recentes remoções de terras que desventravam parte dos cortes no acesso à sala das tubulares, as novas escavações só deveriam voltar a ter lugar após um programa mínimo de divulgação do sítio e dos resultados da sua pesquisa, ou seja, após a constituição de um primeiro núcleo museológico.
 
Há interesse por parte da Secretaria de Estado, Município ou Universidades?

Da parte da Secretaria de Estado da Cultura haverá sobretudo interesse em assegurar que haja um projecto coerente e sustentável de estudo, valorização e conservação do sítio; Da parte do Município, acreditamos que se manterá sempre o interesse e apoio à pesquisa que lhe tem sempre reservado desde os anos 80, e que porventura poderá vir a assumir protagonismo no seu projecto de museologia; Quanto às universidades e centros de investigação, acreditamos que, dando seguimento à vocação iniciada com os “Cursos Avecasta”, a Avecasta será sempre uma grande escola para a Arqueologia Portuguesa e um foco de atenção por parte dos programas de investigação desenvolvidos pelo sistema científico nacional, suas políticas de investimento, e ainda porventura por parte da atenção científica internacional: Haja força e capacidade de persuasão por parte da sua equipa promotora (científica e administrativa) junto das tutelas financiadoras…

Quando poderemos ver as peças recolhidas? Estão previstas exposições ou até um museu?

Pensamos que para muito em breve. Todo o acervo arqueológico e documental proveniente das escavações (peças, fotografias, vídeo, registos, amostras), actualmente arquivado e ainda em estudo na TERRA SCENICA (Centro de Investigação – http://www.terra-scenica.pt ) deverá regressar integralmente a Ferreira do Zêzere (ou à Avecasta) para consubstanciar a constituição de um primeiro Núcleo Museológico, caso se venham a viabilizar condições adequadas e reconhecidas para a sua preservação. Estamos muito empenhados neste processo que esperamos se venha a concretizar em poucos meses.

Quer acrescentar outras informações?

Sim. Dar a notícia de que, após a recente montagem de um extenso relatório ilustrado em PDF sobre o sítio e o seu programa de pesquisa (disponível através do site da TERRA SCENICA), estamos a preparar a edição de um Multimédia interactivo sobre o sítio e sua envolvente que será uma contribuição decisiva para a Museografia Virtual da Gruta e Povoado da Avecasta.

Por fim, resta-nos dizer que, com o desfecho do processo de classificação, estamos a viver porventura o advento de uma nova etapa e oportunidade para a AVECASTA que esperemos seja a decisiva para vir a criar o Pólo de Cultura e Desenvolvimento que este precioso monumento merece e que todos aspiramos – Esperemos que todos nós – autarcas, munícipes, cientistas, proprietários, ferreirenses – estejamos à altura do desafio que a História nos coloca.

José Eduardo Mateus e Paula Queiroz
Responsáveis pelo Programa Científico da Gruta da Avecasta
Investigadores da TERRA SCENICA e do Centro de Ecologia Aplicada Professor Baeta Neves (CEABN)
Professores convidados dos mestrados do IPT e UTAD (Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre; Técnicas de Arqueologia)